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      Almanaque vem do árabe "al-manakh", que significa “o lugar onde o camelo se ajoelha ou onde se apeia do camelo ou do cavalo para conversar e trocar informações”. Esta página é um espaço para assuntos vários: comunidade,  atualidades,  resumos sobre ciências, meio ambiente, história, música, literatura,  artes plásticas e gráficas.

ALICE RUIZ, POETA & COMPOSITORA

Por Carô Murgel

Neste mês contamos, mais uma vez com a gentil colaboração da pesquisadora da Música Popular Brasileira, cantora, violonista, professora e doutora em História Cultural, Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, mais conhecida por Carô Murgel, redigindo esta página para nossos leitores.

           Alice Ruiz pertence àquela geração entre os anos de 1946 e 1964 que aprendemos a chamar de “meia-oito” ou Baby boomers, que revolucionou os costumes e a visão sobre o amor, a geração da luta contra a ditadura, das mulheres contra a misoginia.

                 Apesar de fazer parte da mesma geração, nasci nos anos 1960. Mesmo com a ditadura militar que acompanhou quase toda a minha infância e adolescência, o “mundo” já estava bem mais fácil para mim do que foi para minha mãe, da geração de 1930. A repressão parecia ser muito maior na política do que nos costumes, e na política tínhamos o escape da criatividade. A sombra da censura era tão absurda, para nós todos, que criávamos artifícios elaborados e metáforas infinitas para dizer o que pensávamos nos jornais mimeografados que distribuíamos na Fundação. Mas as meninas de minha casa já cresceram sabendo que teriam de estudar muito para entrar em uma universidade pública, para atingirmos primeiro a realização profissional – a ideia de casamento nem era discutida – criar uma família, para nós, já era uma opção. Esse fato, somado ao “poder dizer”, ainda que por metáforas, e a possibilidade das escolhas profissionais já era, a meu ver, reflexos das conquistas do feminismo e da revolução cultural do final dos anos 1960 e início dos 1970.

       Conheci o trabalho de Alice Ruiz já como estudante de História, em 1985. Naquela época, uma amiga me mostrou seu livro Pelos Pelos, que havia sido lançado um ano antes, na coleção “Cantadas Literárias” da Editora Brasiliense. Eu já conhecia da mesma coleção o livro A Teus Pés, de Ana Cristina Cesar, e prestava muita atenção à poesia. Já era também, desde a década anterior, uma consumidora voraz da poesia marginal vendida nas ruas: tudo o que estava fora do “sistema” era motivo de comemoração, sinais evidentes de resistência.

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Alice Ruiz na foto de Vilma Slomp 
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Alice Ruiz- foto de Lucila Wroblewski

       Em Pelos Pelos, pude ler parte da poesia publicada por ela até então; trazia poemas inéditos e a maior parte dos poemas publicados anteriormente nos livros Navalhanaliga e Paixão Xama Paixão. Terminei o livro em algumas horas, e fui para a rua fazer um grafite pela primeira e única vez em minha vida, com um verso de Alice: “Que importa o sentido se tudo vibra?”. Esses versos ficaram anos no muro do predinho ao lado da padaria Massa Pura, na rua Coronel Quirino, em Campinas, SP. Sensibilidade poética do proprietário, eu achava...

      Conhecemo-nos pessoalmente em 2002, apresentadas por Alzira Espíndola. Fiquei encantada em finalmente conhecer a artista que me fez cometer a transgressão de pichar um muro. Só fui conversar com ela tempos mais tarde, em 2003, quando Alzira e ela montaram o show Fundamental, com suas canções em parceria e as que fizeram com Itamar Assumpção, que faleceu logo depois, em 2004.

       Se fosse para ser uma biografia, começaria dizendo que Alice Ruiz nasceu em Curitiba, Paraná, em 22 de janeiro de 1946, com o sol em Aquário, o que a faz ter os olhos voltados para o presente e o futuro. Ascendente em Touro, que durante a maior parte de sua vida ela pensava ser Áries. Esse ascendente explicaria sua obstinação em defender seus pontos de vista com firmeza e determinação, o que aconteceu inúmeras vezes durante os anos em que estive com ela durante minhas pesquisas de mestrado e doutorado. No momento do seu nascimento, a Lua estava em Libra, o que lhe dá uma apurada sensibilidade estética ao mesmo tempo em que puxa a navalha da liga quando sente que o ambiente em que se encontra está carregado de artificialismos ou adulações.

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        Não é poetisa, esclarece logo de cara. É poeta. Se isso incomoda aos linguistas, que troquem o nome do ofício dos homens que escrevem poemas para “poeto”. Poeta, diz ela, é como artista: não deveria ser marcado pelo sexo. Na época eu defendia “poetisa” por achar que era uma forma específica de resistência das mulheres. Ledo engano. Ela me fez a pergunta que não pode deixar de ser respondida por uma historiadora: “sempre foi assim?”. Eu sabia que existia essa similaridade no inglês e no francês (Poet/Poetess e Poète/Poétesse). Procurei no Dicionário Etimológico da Nova Fronteira e vi que Poeta era utilizado em português desde os anos 1400 e Poetisa a partir de 1813. Soou o alarme, eu já sabia que o século XIX foi de profunda “domesticação” das mulheres (recomendo, para quem não leu, Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf, publicado em 1928).

        Em grego, de onde se origina a palavra poesia (ποίηση - poíesis), há um único termo que designa a pessoa que faz poesia: ποιητής (poietés). No Dicitionnaire de L’Académie Française, no entanto, já constava, em 1798, a utilização de uma palavra feminina para designar poeta, com a ressalva de que o termo era pouco utilizado:

POÉTESSE. s. fém. Femme Poëte. Il est peu usité. On dit de Sapho, de Deshoulières, qu'elles étoient Poëtes; mais on ne dit pas La Poëte Sapho: ce seroit le cas de dire, La poétesse..... On l'évite. [POETISA. s. fem. Fêmea de Poeta. Raramente é usado. Dizemos de Safo, de Deshoulières, que elas eram poetas; mas não dizemos "A Poetisa Safo": seria o caso de dizer "A poetisa"... É evitado.

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       No mesmo dicionário, a palavra masculina Poëte traz a observação que “en parlant d'Une femme, on dit, qu'Elle est Poëte” (quando falamos de uma mulher, dizemos que ela é poeta).  Ou seja, apesar das duas formas distinguirem os sexos, era o correspondente da palavra Poeta o termo utilizado correntemente, a exemplo de outros substantivos comuns aos dois sexos, como artiste (artista).

Na edição de 1832, já no século da domesticação das mulheres, o termo apareceria da seguinte forma, mas com a mesma ressalva anterior sobre sua utilização:

       POÉTESSE. s. f. Femme poëte. Sapho était une poétesse illustre. L'Italie moderne compte plusieurs poétesses célèbres. Il est peu usité. (POETISA. s.f. Poetisa. Safo foi uma poetisa ilustre. A Itália moderna possui diversas poetisas famosas. É um termo raramente usado.)

     Percebe-se, pelos verbetes franceses e pelo dicionário etimológico em português, que a utilização de Poetisa é realmente uma construção que data da passagem do século XVIII para o XIX. Se para Alice a questão é o som da palavra e uma desconfiança intuitiva do termo, acredito que ela tenha razão nessas desconfianças. O termo poetisa seria uma forma de separar a criação artística das mulheres como uma forma menor dentro da arte da poesia, mais uma forma de exclusão das mulheres nas construções linguísticas. Não aceitá-lo, portanto, é uma atitude política. Cecília Meireles já fizera isso anteriormente (“Não sou alegre nem sou triste / Sou poeta)

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      Poeta e feminista, filha da contracultura, uma figura pública que foi casada com outra figura pública, de cuja memória se tornou de alguma forma guardiã, lugar em que ela gostaria de não estar. Penélope de Ulisses? Essa Penélope não gosta de se voltar para o passado, a não ser como correção de percurso. Essa Penélope não espera, tece. Tece poemas, palavras, beleza. Escuta; presta atenção no que lhe é dito; reconhece armadilhas e se desvia. Navalhanaliga. Essa Penélope dispensa louvores; escreve poesia porque não consegue que não seja assim. É um ofício, diz. Mas também é, às vezes, como respirar.

      A poesia e a canção em sua vida andaram sempre próximas, apesar de só ter começado a compor em meados dos anos 1970. As duas se juntam no trabalho de Alice sob a égide de sua verdadeira arte: a palavra. Em todos os seus interesses, da poesia à composição, da astrologia às relações de afeto, passando pelos textos feministas e pelo encantamento com as artes orientais, a poeta é aficionada pela utilização perfeita das palavras.

     

     Escreveu contos e poesias desde muito jovem, mas só foi mostrar seus poemas aos vinte e dois anos, quando se casou com Paulo Leminski. O encontro dos dois poetas foi, como ela diz, “casamento à primeira vista”. Encontraram-se, pela primeira vez, na festa de aniversário dele, em 24 de agosto de 1968 e foi reconhecimento imediato: começou ali o primeiro dia de vinte anos de parceria e cumplicidade, que a poeta expôs com beleza precisa neste poema:

assim que vi você

logo vi que ia dar coisa

coisa feita pra durar

batendo duro no peito

até eu acabar virando

alguma coisa

parecida com você

 

parecia ter saído

de alguma lembrança antiga

que eu nunca tinha vivido

 

alguma coisa perdida

que eu nunca tinha tido

 

alguma voz amiga

esquecida no meu ouvido

 

agora não tem mais jeito

carrego você no peito

poema na camiseta

com a tua assinatura

 

já nem sei se é você mesmo

ou se sou eu que virei

parte da tua leitura

     Leminski gostava de usar a poesia como forma de sedução, e fez o mesmo com Alice – foi quando ela contou que tinha também alguns versos e mostrou ao poeta. Surpreso, Leminski comentou que ela escrevia haicais, termo que até então ela não conhecia. Mas encantou-se com a forma poética japonesa, e passou então a estudar com profundidade o haicai e seus poetas, tendo traduzido quatro livros de autores e autoras japonesas, nos anos 1980.

     O interesse pela canção também surgiu muito cedo. Em seu livro Poesia pra tocar no rádio (Blocos/1999), Alice conta que sonhava ser cantora, mas que não tinha afinação e fôlego para isso: “como sempre rascunhei alguns versos, meu sonho foi se transfigurando em composição de letras, sem que eu percebesse.”

       Com vinte e seis anos, depois de algumas cervejas com Leminski, compuseram sua única parceria apenas cantarolando, a canção “Nóis fumo”, em ritmo de moda de viola, que só foi registrada em disco mais de trinta anos depois, em 2004, por Mário Gallera, aqui na gravação de 10 anos depois com Estrela Ruiz Leminski:

        O tempo que viveu com Leminski é lembrado a todo instante Perguntada sobre essa relação, ou como se sente com essa “associação eterna” por uma repórter de A Gazeta (Vitória, ES), Alice responde:

        “Inevitável. Dois poetas, apaixonados pela poesia e um pelo outro, convivendo por 20 anos, três filhos, vários livros, não há como não associar. Doloroso, porque o desafio de seguir em frente se torna mais difícil quando você é lembrado o tempo todo do seu luto. E didático. Ainda estou aprendendo (e ensinando) a separar o que é público do que é pessoal. “

        Com Leminski, Alice teve três filhos: Miguel (falecido aos 10 anos), Estrela e Áurea. Os filhos, para ela, foram sua melhor parceria com o poeta.

      Sobre Miguel, a única dor que ainda carrega do passado, dedicou seu primeiro livro, Navalhanaliga:

      Desde 1980, com Navalhanaliga, publicou mais de 30 livros entre poesia, prosa e antologias, e traduziu quatro. Recebeu dois Prêmios Jabuti de Poesia por sua obra, o de 1988, por Vice-Verso (Editora Brasiliense), e o de 2009, por Dois em Um (Iluminuras).

      E foi por conta do livro Navalhanaliga que Alice teve alguns poemas musicados por Itamar Assumpção, em 1985, e a primeira gravação de uma letra sua. Itamar, ao ler o livro voltando de ônibus de Curitiba depois de visitar Alice e Paulo, ficou fascinado com a escrita da poeta, e compôs a canção “Navalha na liga”,  com recorte de vários poemas do livro ( ouça os vídeos ):

     Além de Itamar, Alice fez muitos outros parceiros na composição musical, como Alzira Espíndola, Lucina, Iara Rennó, Zé Miguel Wisnik, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, Chico César, Ná Ozzetti e Luiz Tatit, entre outros.

  Uma história divertida aconteceu quando Zé Miguel Wisnik lhe pediu uma letra que fosse “bem feminina”, já que participariam juntos de um evento promovido pelo SESC São Caetano para o Dia Internacional da Mulher. Alice mandou algumas letras e, entre elas, um texto que havia escrito contendo uma receita de frango, ao qual deu o nome de “Sem receita”. Conta que enviou esse texto por curiosidade, mas quando falou com o compositor, soube que fora justamente o que ele escolhera para musicar.

    “Socorro”, com Arnaldo Antunes, se tornou um sucesso que continua em evidência nas rádios brasileiras, nas gravações de Cássia Eller, Arnaldo Antunes e Gal Costa. A canção fala das experiências de uma mulher que após muita dor para de sentir.

     A  parceria de Alice Ruiz com Ceumar também tem história: Alice estava lendo o mapa astrológico para Ceumar e disse a primeira frase da canção: “você é a pessoa mais parecida comigo que eu conheço e fez a letra que foi musicada depois por Ceumar:

     Nesse artigo, falei mais sobre a composição de Alice, que é o meu foco de pesquisas – mas no caso dela, vale a pena conhecer também a poesia e os haikais, pelos quais ganhou o nome de Yukaada comunidade nipo-brasileira de Curitiba, nos 300 anos da cidade e 85 anos da imigração japonesa, “em reconhecimento à dedicação, divulgação e grandiosidade que deu à poesia de origem japonesa, haicai”. Há vários poemas e haicais na página oficial da poeta, em http://www.aliceruiz.mpbnet.com.br que valem a visita

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